sábado, 21 de abril de 2012



Quando falamos numa família homoparental estamos desde logo a entrar por 
uma via que, à partida, parece contrariar a própria noção de família, assente numa forte distinção de género, a que correspondem simbolicamente algumas atribuições: os papéis de mãe/mulher e de pai/homem. Se é certo que, aparentemente, estas distinções tendem a estar cada vez mais esbatidas, e que se espera que a responsabilidade na educação dos filhos seja dividida por igual entre os pais, continua a dar-se uma enorme importância às distinções de género no seio da família, consideradas como referências fundamentais.  

As distinções de que falamos pressupõem que a mulher é mãe e o homem pai, e que os dois coexistem numa relação parental (mesmo se uma das partes nunca participou de facto nesta relação) e esta é normalmente vista como a única e natural possibilidade numa relação que é, apesar de tudo, socialmente construída. 

A ideia de que para se ser pai é necessário ser-se homem está ligada àquela outra defendida por David Blankenhorn, autor do livro Fatherless América (1995) que causou um enorme debate ao afirmar que a própria masculinidade só se atinge plenamente com a paternidade: 

"A paternidade, mais do que qualquer outra actividade masculina, ajuda os homens a tornarem-se bons homens: mais propensos a obedecer às leis, a ser bons cidadãos, a pensar nas necessidades dos outros". (p.21 – tradução minha) 
   
É certo que, para o autor, esta paternidade benévola é apanágio exclusivo dos 
pais biológicos ou adoptivos, sendo os padrastos excluídos desta propensão para o bem. Também na equação subjacente a este argumento existe a mãe/mulher, cuja presença é fundamental e necessária à existência deste pai/homem.

Para lá do interesse em defender os valores da família tradicional americana, o autor está empenhado em reforçar, através da família, as distinções de género, absolutamente necessárias à conservação destes valores.  

Quando se fala em famílias homoparentais esta lógica familiar fica desde logo ameaçada e com ela o futuro da família pensada nestes termos. As justificações para a não-aceitação das famílias homoparentais são frequentemente as de que se trata de uma situação anormal, desviante, em que as crianças vão crescer confusas, destituídas de valores morais, em que serão provavelmente recrutadas para a homossexualidade. Esta ideia pode manifestar-se de várias formas  e quase sempre é expressa em favor do “superior interesse da criança”.

Em 2003  (a 31 de Julho), o Vaticano emitiu um documento de oposição ao casamento homossexual onde se lia: “Inserir crianças nas uniões homossexuais através da  adopção significa, na realidade, praticar a violência 
sobre essas crianças, no sentido que se  aproveita do seu estado de fraqueza para introduzi-las em ambientes que não favorecem o seu pleno desenvolvimento humano.”

Apesar das alegações da Igreja de que “o pleno desenvolvimento humano” das crianças que crescem nas famílias homossexuais está comprometido, o que parece estar de facto comprometido nesta possibilidade é mais a plena continuidade da família tradicional. 

Desde logo porque o referido documento trata de uma eventual autorização do casamento homossexual e da sua reprodução, ignorando a existência dos milhares de famílias que por todo o mundo, vivem já, e nalguns casos há muito, nessas condições sem que os estudos efectuados revelem qualquer deficit de humanidade nestes filhos, nestas crianças – ideia corroborada pela  American Academy of Pediatrics que se posiciona publicamente em favor da adopção de crianças por casais do mesmo sexo.  

Antes do mais é preciso lembrar aos  que acreditam que a adopção é a única 
forma de um casal homossexual ter filhos  que não só a maioria dos indivíduos que compõem estes casais não é estéril como tão-pouco a reprodução é um acto exclusivamente natural.

Ter filhos é um acto de vontade, uma vontade vista como um desejo natural, que a homossexualidade não inibe! 

O parentesco foi já “desnaturalizado” (Collier e Yanagisako, 1997), porquanto as evidências etnográficas esclarecem a sua pertença mais ao domínio da cultura que da natureza, uma vez que as associações genealógicas são sobretudo construídas.

David Schneider (1984) foi dos antropólogos que  mais se bateu contra o enraizamento biológico do parentesco que prevalece no pensamento ocidental onde, por definição, o parentesco é composto por relações baseadas na reprodução sexual. Sendo um dos primeiros grandes críticos do que designou por “Doutrina da Unidade Genealógica da Humanidade”, chamou a atenção para que o método não é mais que uma tentativa de generalização de uma noção ocidental assente na ideia de que o parentesco está ligado à partilha de uma substância comum, que aproxima e identifica as pessoas umas com as 
outras.

No Ocidente, esta consubstancialidade está fortemente ligada à reprodução e ao pressuposto de que “o sangue é mais espesso que a água” (blood is thicker than water).  Os estudos realizados em diversos contextos não ocidentais revelam, porém, que o valor atribuído à reprodução no Ocidente não é universal.

Entre os Nuer do Sudão, por exemplo, a designação de pai estendia-se a demais membros da família, incluindo mesmo alguma irmã do pai, que por ser estéril passava, ao fim de alguns anos de não gestação, a constar do grupo dos homens e a ser chamada de pai (Héritier, 1996).

E nas Ilhas Salomão, por exemplo, em que as crianças ficam com os pais não pela ordem natural das coisas mas porque os pais as desejam e são autorizados a fazê-lo pela comunidade, torna-se evidente o carácter frágil e condicional das relações entre pais e filhos (Holy, 1996).  

A par da evidência universal da contingência do parentesco e da sua “desnaturalização”, os desenvolvimentos tecnológicos aumentam as possibilidades no domínio do parentesco ao introduzir a escolha como critério de construção familiar. 

Marilyn Strathern (1996) chama a atenção para a forma como as possibilidades introduzidas pelas novas tecnologias reprodutivas, desenvolvidas para colmatar limitações biológicas, vão mais longe na requalificação do parentesco: ao criarem um vínculo natural por via artificial, como resultado da escolha de se ter filhos que naturalmente não se podem conceber, abrem caminho para que outros candidatos a pais, naturalmente impossibilitados, possam também satisfazer as suas pretensões.

A ciência permite já situações que desafiam todas as noções de parentesco, como é o caso de mães virgens ou de duplas mães biológicas (no caso em que existe uma mãe hospedeira, que gera um embrião proveniente de uma combinação de óvulo/espermatozóide alheia).  

Mas não é apenas a ciência que dá passos na construção de relações familiares não assentes nas distinções de género fundamentais, os governos de alguns países, acompanham já estes desenvolvimentos ao permitirem aos casais homossexuais tanto a adopção plena de crianças, como a adopção do filho do companheiro por um parceiro do mesmo sexo.

Nesta segunda forma, a mais frequente na Europa e em prática em países onde a adopção conjunta não é, ainda, permitida, trata-se de adaptar a legislação a uma realidade em que as famílias se vêem muitas vezes incapazes de gerir a sua situação familiar por falta de enquadramento legal (seja na relação dos filhos com a escola, seja na própria vivência quotidiana quando, por  exemplo, o pai/mãe legal se ausenta e a criança é deixada com o companheiro/a.

Mas há países que vão mesmo mais longe nesta adaptação às diversas formas de agrupamento familiar e aplicam a presunção de paternidade à parceira não parturiente de um casal de lésbicas que tenha um filho por inseminação artificial - é assim no Quebeque, no Canadá.   

Voltando à questão inicial da distinção pai/mãe, homem/mulher, importa desde logo chamar a atenção para o modo como a reprodução medicamente assistida introduz novas questões com forte ressonância no plano social e jurídico.

Hoje em dia as famílias são cada vez mais diversificadas e pai/madrasta; mãe/padrasto, meio-irmão-materno, meio-irmão-paterno, irmão-filho-do-marido-da-mãe, etc. são realidades que não surpreendem ninguém. Para além destas famílias recompostas, as novas tecnologias evidenciam ainda outras distinções como “mãe genética”, “mãe biológica”, “mãe de aluguer”, etc.

As realidades sociais há  muito que transcendem as designações que existem e que são visivelmente insuficientes.  

Nas famílias homoparentais esta parece  ser das situações mais difíceis de 
resolver e aceitar: assim, surgem termos como “a outra mãe”, “madrasta”, “tia” ou então opta-se pela utilização apenas do nome da  pessoa em causa.
Em relação ao casal é referido como “a minha mãe e a parceira”; “as minhas mães”; “os meus pais”, etc.

Esta dificuldade, porém, não é tanto sentida no seio da família, sobretudo quando as crianças vivem esta situação desde sempre, mas nas referências à família fora do seio familiar. 

Abigail Garner, autora de um importante estudo americano sobre os filhos de pais LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgender) – Families Like Mine (2004) –, e ela própria filha de pai gay, conta que certa vez, na  cerimónia de graduação da faculdade, uma colega lhe perguntou qual dos dois homens para quem apontou como sendo a família, era o seu pai. Garner esclareceu que um era seu pai, e o outro, o parceiro dele (em inglês partner).  

“O ‘partner’?” perguntou. Eu  sustive a respiração. “Bem” continuou “não é fantástico que o ‘partner’ do teu pai tenha vindo de tão longe com ele para  assistir à cerimónia da tua graduação!”.



Respirei de alívio, satisfeita por ela ter percebido e achado fantástico. Mas depois acrescentou, “A que ramo de negócio é que eles se dedicam?” (Garner, 2004: 139 – Tradução minha) – é que partner em inglês quer igualmente dizer sócio.  

A inexistência de nomes para as relações torna difícil fazer transparecer a importância destas pessoas na família quando se fala dela a estranhos. A antropóloga Anne Cadoret (2000) observa no contexto francês, e em relação aos pais, esta mesma necessidade: “Nota-se uma vontade muito nítida de utilizar um termo de parentesco e não apenas o nome próprio da pessoa em causa, sublinhando assim uma vontade de formar uma família, de se afirmarem como pais.” (Cadoret, 2000: 173 – Tradução minha).

Assim, tanto acontece que mãe e pai sejam os biológicos ou legais, e os restantes, padrastos ou padrinhos, como também se opta por chamar pai/mãe a ambos os membros do casal, seguido do primeiro nome que distingue cada um deles.  As dificuldades relatadas não seriam  provavelmente muito distintas das que existiriam para a adopção comum, não fossem estas estar, normalmente, ao serviço de uma ficção de nascimento: veja-se as restrições no acesso à adopção e à reprodução assistida, sob o argumento do princípio do bem-estar da criança, sendo que muitas vezes as condições exigidas jamais seriam satisfeitas pelas famílias que geram crianças sem recorrer a estes meios. Já quando uma mãe sozinha, ou um pai celibatário, ou até um casal do mesmo sexo opta pela adopção, está-se em geral consciente da ausência de um dos sexos nesta composição.

Quase todos os estudos nesta área referem não ser difícil, na maioria dos casos, situar o sexo ausente uma vez que a criança nasce de um casal heterossexual e é posteriormente adoptada por  esta ou aquela pessoa, ou pelo casal do mesmo sexo.

Por outro lado, no caso dos filhos resultantes de inseminação artificial esta 
questão torna-se mais difícil de resolver. O envolvimento de mais do que duas pessoas no processo de concepção dificulta a nomeação  de cada um dos pais e privilegia um em detrimento do outro dos membros do casal.  

Sejam quais forem os termos usados, a dificuldade em classificar os parentes 
parece residir mais na forma como se explicam as relações familiares em causa.





O termo escolhido deverá evidenciar a existência de uma relação de tipo familiar e a posição da pessoa face a quem a nomeia. Como diz ainda Anne Cadoret (2000):  A família sempre foi uma montagem.

Tanto para as famílias homossexuais quanto para as famílias heterossexuais trata-se de fazer a ‘bricolage’ da família a partir de diversos argumentos de parentesco: o biológico, o social, o afectivo, o jurídico, o cultural, o histórico. Mas as famílias homossexuais fazem cair a nossa ilusão de um “parentesco natural”, de uma adequação do parentesco biológico ao parentesco social. (Cadoret, 2000: 173 – Tradução minha) 

Para além disso, estas famílias, ao reproduzir-se poderão estar a reproduzir o 
desajuste: que será dos filhos que crescem nestas famílias? Que homens e que mulheres serão?

Que famílias irão eles construir? Nos anos 80, nos Estados Unidos da América, os estudos sobre filhos de casais do mesmo sexo evidenciavam a necessidade de contrariar os argumentos homofóbicos e sublinhavam a existência de poucas diferenças entre as crianças educadas numa família homossexual face às que cresciam numa família heterossexual, e era até recorrente a indicação de que na sua grande maioria estas crianças na  idade adulta tendiam para a heterossexualidade, como se isso fosse sinónimo de uma educação eficaz.

As descobertas iam ao encontro dos receios da maioria heterossexual e homo-hesitante, e uma vez que esses receios se prendem normalmente com a hipótese de estas crianças apresentarem inconformidades de género, se as raparigas crescessem mais arrapazadas e os rapazes efeminados, tal seria motivo para preocupação.

Em 2001, os sociólogos americanos Judith Stacey e Timothy J. Biblarz, reexaminaram os dados utilizados nos estudos sobre os filhos das famílias do mesmo sexo, efectuados entre 1981 e 1998, e concluíram que contrariamente ao que antes havia sido divulgado, estes filhos apresentavam algumas diferenças relativamente aos seus congéneres de famílias heterossexuais.

A interpretação feita por estes autores sugere uma maior tendência dos filhos com pais do mesmo sexo para desafiar as ideias relativas aos papéis de género e à sexualidade.





Ao mesmo tempo que se mostravam mais abertos, por exemplo, ao igual desempenho de funções normalmente associadas a um dos sexos, também se revelavam mais abertos à aceitação das relações homossexuais, sem que isso fosse, no entanto, sinónimo de uma sexualidade mal resolvida – tanto para a homossexualidade quanto para a heterossexualidade.

No seu estudo, sobre filhos de casais do mesmo sexo, actualmente entre os 20 e os 30 anos, Abigail Garner verifica que por vezes estes filhos apresentam personalidades em cujas distinções de género são menos óbvias e em que os papéis são mais indistintos – um aspecto que os conservadores tomam como evidência de uma falha no desenvolvimento das crianças, mas que os próprios consideram, em geral, ser uma mais valia, na medida em que lhes confere uma liberdade maior de comportamento ao poderem expressar livremente traços mais  efeminados ou masculinos e ao serem abertamente afectuosos com alguém do mesmo sexo sem que isso os faça sentir esquisitos ou inseguros em relação à sua própria sexualidade.

Entre os jovens adultos com quem trabalhou, Garner percebeu como muitos deles têm uma clara noção de que a sua identidade de género escapa, por vezes, à rigidez dos padrões e não se coaduna exactamente com o que é ser homem e mulher, mas longe de considerarem isso uma falha no seu desenvolvimento pessoal, acreditam que tal os valoriza no seu relacionamento com os outros e lhes dá uma maior abertura e capacidade de tolerância – 
conclusão, aliás, a que têm chegado quase todos os estudos nesta área.   

E se os próprios se sentem bem, e integrados, e resolvidos na sua sexualidade, 
por que motivo se teme tanto pelo desenvolvimento destas crianças? Porque é que se diz ser no seu superior interesse que se impede a adopção por casais do mesmo sexo?

Como é que se poderá viver com uma realidade familiar que parece não ensinar a distinguir, com as suas próprias referências, o lugar dos homens e das mulheres na sociedade e na família? E quando é que o “problema” das  famílias homoparentais passa a ser o “problema” da família? Acima de tudo, o que a homoparentalidade evidencia é a possibilidade de se formar e viver a família de um modo não alicerçado nas categorias de género que na sociedade Ocidental estiveram sempre na base da sua formação, justificando (e justificadas por) o seu carácter natural. Para melhor se perceber a homoparentalidade é pois fundamental desmontar este conceito de família assente numa forte distinção de género e a partir daí perceber se ainda sobram motivos para que se receie a sua proliferação.

M | Ribeiro Henriques

“Há ideias e factos, que são portadores de futuro”

|Coimbra, 21/04/2012|