Quando falamos numa família homoparental
estamos desde logo a entrar por
uma via que, à partida, parece contrariar
a própria noção de família, assente numa forte distinção de género, a que
correspondem simbolicamente algumas atribuições: os papéis de mãe/mulher e
de pai/homem. Se é certo que, aparentemente, estas distinções tendem a estar
cada vez mais esbatidas, e que se espera que a responsabilidade na educação
dos filhos seja dividida por igual entre os pais, continua a dar-se uma
enorme importância às distinções de género no seio da família,
consideradas como referências fundamentais.
As distinções de que falamos pressupõem
que a mulher é mãe e o homem pai, e que os dois coexistem numa relação
parental (mesmo se uma das partes nunca participou de facto nesta relação)
e esta é normalmente vista como a única e natural possibilidade numa
relação que é, apesar de tudo, socialmente construída.
A ideia de que para se ser pai é
necessário ser-se homem está ligada àquela outra defendida por David Blankenhorn,
autor do livro Fatherless América (1995) que causou um enorme debate ao
afirmar que a própria masculinidade só se atinge plenamente com a
paternidade:
"A
paternidade, mais do que qualquer outra actividade masculina, ajuda os
homens a tornarem-se bons homens: mais propensos a obedecer às leis, a ser
bons cidadãos, a pensar nas necessidades dos outros". (p.21 – tradução minha)
É certo que, para o autor, esta
paternidade benévola é apanágio exclusivo dos
pais biológicos ou adoptivos, sendo os
padrastos excluídos desta propensão para o bem. Também na equação subjacente a
este argumento existe a mãe/mulher, cuja presença é fundamental e
necessária à existência deste pai/homem.
Para lá do interesse em defender os
valores da família tradicional americana, o autor está empenhado em reforçar,
através da família, as distinções de género, absolutamente necessárias à conservação
destes valores.
Quando se fala em famílias homoparentais
esta lógica familiar fica desde logo ameaçada e com ela o futuro da
família pensada nestes termos. As justificações para a não-aceitação das
famílias homoparentais são frequentemente as de que se trata de uma situação
anormal, desviante, em que as crianças vão crescer confusas, destituídas
de valores morais, em que serão provavelmente recrutadas para a
homossexualidade. Esta ideia pode manifestar-se de várias formas e quase
sempre é expressa em favor do “superior interesse da criança”.
Em 2003 (a 31 de Julho), o Vaticano
emitiu um documento de oposição ao casamento homossexual onde se lia: “Inserir crianças nas uniões
homossexuais através da adopção significa, na realidade, praticar a
violência
sobre
essas crianças, no sentido que se aproveita do seu estado de fraqueza
para introduzi-las em ambientes que não favorecem o seu pleno
desenvolvimento humano.”
Apesar das alegações da Igreja de que “o pleno desenvolvimento humano” das
crianças que crescem nas famílias homossexuais está comprometido, o que
parece estar de facto comprometido nesta possibilidade é mais a plena
continuidade da família tradicional.
Desde logo porque o referido documento trata
de uma eventual autorização do casamento homossexual e da sua reprodução,
ignorando a existência dos milhares de famílias que por todo o mundo, vivem já,
e nalguns casos há muito, nessas condições sem que os estudos efectuados
revelem qualquer deficit de humanidade nestes filhos, nestas crianças –
ideia corroborada pela American Academy of Pediatrics que se posiciona
publicamente em favor da adopção de crianças por casais do mesmo sexo.
Antes do mais é preciso lembrar aos
que acreditam que a adopção é a única
forma de um casal homossexual ter filhos
que não só a maioria dos indivíduos que compõem estes casais não é
estéril como tão-pouco a reprodução é um acto exclusivamente natural.
Ter filhos é um acto de vontade, uma
vontade vista como um desejo natural, que a homossexualidade não inibe!
O parentesco foi já “desnaturalizado”
(Collier e Yanagisako, 1997), porquanto as evidências etnográficas
esclarecem a sua pertença mais ao domínio da cultura que da natureza, uma
vez que as associações genealógicas são sobretudo construídas.
David Schneider (1984) foi dos
antropólogos que mais se bateu contra o enraizamento biológico do
parentesco que prevalece no pensamento ocidental onde, por definição, o parentesco
é composto por relações baseadas na reprodução sexual. Sendo um dos primeiros
grandes críticos do que designou por “Doutrina da Unidade Genealógica da Humanidade”,
chamou a atenção para que o método não é mais que uma tentativa de generalização
de uma noção ocidental assente na ideia de que o parentesco está ligado à partilha
de uma substância comum, que aproxima e identifica as pessoas umas com as
outras.
No Ocidente, esta consubstancialidade está
fortemente ligada à reprodução e ao pressuposto de que “o sangue é mais
espesso que a água” (blood is thicker than water). Os estudos realizados
em diversos contextos não ocidentais revelam, porém, que o valor atribuído
à reprodução no Ocidente não é universal.
Entre os Nuer do Sudão, por exemplo,
a designação de pai estendia-se a demais membros da família, incluindo mesmo
alguma irmã do pai, que por ser estéril passava, ao fim de alguns anos de
não gestação, a constar do grupo dos homens e a ser chamada de pai
(Héritier, 1996).
E nas Ilhas Salomão, por exemplo, em
que as crianças ficam com os pais não pela ordem natural das coisas mas
porque os pais as desejam e são autorizados a fazê-lo pela comunidade,
torna-se evidente o carácter frágil e condicional das relações entre pais
e filhos (Holy, 1996).
A par da evidência universal da
contingência do parentesco e da sua “desnaturalização”, os
desenvolvimentos tecnológicos aumentam as possibilidades no domínio do
parentesco ao introduzir a escolha como critério de construção familiar.
Marilyn Strathern (1996) chama a atenção
para a forma como as possibilidades introduzidas pelas novas tecnologias
reprodutivas, desenvolvidas para colmatar limitações biológicas, vão mais
longe na requalificação do parentesco: ao criarem um vínculo natural por
via artificial, como resultado da escolha de se ter filhos que naturalmente
não se podem conceber, abrem caminho para que outros candidatos a pais, naturalmente
impossibilitados, possam também satisfazer as suas pretensões.
A ciência permite já situações que
desafiam todas as noções de parentesco, como é o caso de mães virgens ou
de duplas mães biológicas (no caso em que existe uma mãe hospedeira, que gera
um embrião proveniente de uma combinação de óvulo/espermatozóide alheia).
Mas não é apenas a ciência que dá passos
na construção de relações familiares não assentes nas distinções de género
fundamentais, os governos de alguns países, acompanham já estes
desenvolvimentos ao permitirem aos casais homossexuais tanto a adopção
plena de crianças, como a adopção do filho do companheiro por um parceiro
do mesmo sexo.
Nesta segunda forma, a mais frequente na
Europa e em prática em países onde a adopção conjunta não é, ainda,
permitida, trata-se de adaptar a legislação a uma realidade em que as
famílias se vêem muitas vezes incapazes de gerir a sua situação familiar
por falta de enquadramento legal (seja na relação dos filhos com a escola,
seja na própria vivência quotidiana quando, por exemplo, o pai/mãe
legal se ausenta e a criança é deixada com o companheiro/a.
Mas há países que vão mesmo mais longe
nesta adaptação às diversas formas de agrupamento familiar e aplicam a
presunção de paternidade à parceira não parturiente de um casal de
lésbicas que tenha um filho por inseminação artificial - é assim no
Quebeque, no Canadá.
Voltando à questão inicial da distinção
pai/mãe, homem/mulher, importa desde logo chamar a atenção para o modo
como a reprodução medicamente assistida introduz novas questões com forte
ressonância no plano social e jurídico.
Hoje em dia as famílias são cada vez
mais diversificadas e pai/madrasta; mãe/padrasto, meio-irmão-materno, meio-irmão-paterno,
irmão-filho-do-marido-da-mãe, etc. são realidades que não surpreendem
ninguém. Para além destas famílias recompostas, as novas tecnologias evidenciam
ainda outras distinções como “mãe genética”, “mãe biológica”, “mãe de aluguer”,
etc.
As realidades sociais há muito que
transcendem as designações que existem e que são visivelmente
insuficientes.
Nas famílias homoparentais esta parece
ser das situações mais difíceis de
resolver e aceitar: assim, surgem termos
como “a outra mãe”, “madrasta”, “tia” ou então opta-se pela utilização
apenas do nome da pessoa em causa.
Em relação ao casal é referido como
“a minha mãe e a parceira”; “as minhas mães”; “os meus pais”, etc.
Esta dificuldade, porém, não é tanto
sentida no seio da família, sobretudo quando as crianças vivem esta
situação desde sempre, mas nas referências à família fora do seio
familiar.
Abigail Garner, autora de um importante
estudo americano sobre os filhos de pais LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais
e Transgender) – Families Like Mine (2004) –, e ela própria filha de pai
gay, conta que certa vez, na cerimónia de graduação da faculdade,
uma colega lhe perguntou qual dos dois homens para quem apontou como sendo
a família, era o seu pai. Garner esclareceu que um era seu pai, e o outro,
o parceiro dele (em inglês partner).
“O ‘partner’?” perguntou. Eu sustive
a respiração. “Bem” continuou “não é fantástico que o ‘partner’ do teu pai
tenha vindo de tão longe com ele para assistir à cerimónia da
tua graduação!”.
Respirei de alívio, satisfeita por ela ter
percebido e achado fantástico. Mas depois acrescentou, “A que ramo de negócio é que eles se
dedicam?” (Garner, 2004: 139 – Tradução minha) – é que partner em inglês quer igualmente dizer
sócio.
A inexistência de nomes para as relações
torna difícil fazer transparecer a importância destas pessoas na família
quando se fala dela a estranhos. A antropóloga Anne Cadoret (2000) observa
no contexto francês, e em relação aos pais, esta mesma necessidade: “Nota-se uma vontade muito nítida de
utilizar um termo de parentesco e não apenas o nome próprio da pessoa em
causa, sublinhando assim uma vontade de formar uma família, de se
afirmarem como pais.” (Cadoret, 2000: 173 – Tradução minha).
Assim, tanto acontece que mãe e pai sejam
os biológicos ou legais, e os restantes, padrastos ou padrinhos, como
também se opta por chamar pai/mãe a ambos os membros do casal, seguido do
primeiro nome que distingue cada um deles. As dificuldades relatadas não
seriam provavelmente muito distintas das que existiriam para a
adopção comum, não fossem estas estar, normalmente, ao serviço de uma
ficção de nascimento: veja-se as restrições no acesso à adopção e à
reprodução assistida, sob o argumento do princípio do bem-estar da
criança, sendo que muitas vezes as condições exigidas jamais seriam
satisfeitas pelas famílias que geram crianças sem recorrer a estes meios. Já
quando uma mãe sozinha, ou um pai celibatário, ou até um casal do mesmo
sexo opta pela adopção, está-se em geral consciente da ausência de um dos
sexos nesta composição.
Quase todos os estudos nesta área referem
não ser difícil, na maioria dos casos, situar o sexo ausente uma vez que a
criança nasce de um casal heterossexual e é posteriormente adoptada por
esta ou aquela pessoa, ou pelo casal do mesmo sexo.
Por outro lado, no caso dos filhos
resultantes de inseminação artificial esta
questão torna-se mais difícil de resolver.
O envolvimento de mais do que duas pessoas no processo de concepção
dificulta a nomeação de cada um dos pais e privilegia um em detrimento
do outro dos membros do casal.
Sejam quais forem os termos usados, a
dificuldade em classificar os parentes
parece residir mais na forma como se
explicam as relações familiares em causa.
O termo escolhido deverá evidenciar a
existência de uma relação de tipo familiar e a posição da pessoa face a
quem a nomeia. Como diz ainda Anne Cadoret (2000): A família sempre foi
uma montagem.
Tanto
para as famílias homossexuais quanto para as famílias heterossexuais
trata-se de fazer a ‘bricolage’ da família a partir de diversos argumentos
de parentesco: o biológico, o social, o afectivo, o jurídico, o cultural,
o histórico. Mas as famílias homossexuais fazem cair a nossa ilusão de um
“parentesco natural”, de uma adequação do parentesco biológico ao
parentesco social.
(Cadoret, 2000: 173 – Tradução minha)
Para além disso, estas famílias, ao
reproduzir-se poderão estar a reproduzir o
desajuste: que será dos filhos que crescem
nestas famílias? Que homens e que mulheres serão?
Que famílias irão eles construir? Nos
anos 80, nos Estados Unidos da América, os estudos sobre filhos de casais
do mesmo sexo evidenciavam a necessidade de contrariar os argumentos
homofóbicos e sublinhavam a existência de poucas diferenças entre as
crianças educadas numa família homossexual face às que cresciam numa
família heterossexual, e era até recorrente a indicação de que na sua
grande maioria estas crianças na idade adulta tendiam para a heterossexualidade,
como se isso fosse sinónimo de uma educação eficaz.
As descobertas iam ao encontro dos
receios da maioria heterossexual e homo-hesitante, e uma vez que esses
receios se prendem normalmente com a hipótese de estas crianças
apresentarem inconformidades de género, se as raparigas crescessem mais
arrapazadas e os rapazes efeminados, tal seria motivo para preocupação.
Em 2001, os sociólogos americanos Judith
Stacey e Timothy J. Biblarz, reexaminaram os dados utilizados nos estudos
sobre os filhos das famílias do mesmo sexo, efectuados entre 1981 e 1998,
e concluíram que contrariamente ao que antes havia sido divulgado, estes
filhos apresentavam algumas diferenças relativamente aos seus congéneres
de famílias heterossexuais.
A interpretação feita por estes
autores sugere uma maior tendência dos filhos com pais do mesmo sexo para
desafiar as ideias relativas aos papéis de género e à sexualidade.
Ao mesmo tempo que se mostravam mais
abertos, por exemplo, ao igual desempenho de funções normalmente
associadas a um dos sexos, também se revelavam mais abertos à aceitação das
relações homossexuais, sem que isso fosse, no entanto, sinónimo de uma
sexualidade mal resolvida – tanto para a homossexualidade quanto para a
heterossexualidade.
No seu estudo, sobre filhos de casais do
mesmo sexo, actualmente entre os 20 e os 30 anos, Abigail Garner verifica
que por vezes estes filhos apresentam personalidades em cujas distinções
de género são menos óbvias e em que os papéis são mais indistintos – um
aspecto que os conservadores tomam como evidência de uma falha no desenvolvimento
das crianças, mas que os próprios consideram, em geral, ser uma mais valia, na
medida em que lhes confere uma liberdade maior de comportamento ao poderem
expressar livremente traços mais efeminados ou masculinos e ao
serem abertamente afectuosos com alguém do mesmo sexo sem que isso os faça
sentir esquisitos ou inseguros em relação à sua própria sexualidade.
Entre os jovens adultos com quem
trabalhou, Garner percebeu como muitos deles têm uma clara noção de que a sua
identidade de género escapa, por vezes, à rigidez dos padrões e não se
coaduna exactamente com o que é ser homem e mulher, mas longe de
considerarem isso uma falha no seu desenvolvimento pessoal, acreditam que
tal os valoriza no seu relacionamento com os outros e lhes dá uma maior
abertura e capacidade de tolerância –
conclusão, aliás, a que têm chegado quase
todos os estudos nesta área.
E se os próprios se sentem bem, e
integrados, e resolvidos na sua sexualidade,
por que motivo se teme tanto pelo
desenvolvimento destas crianças? Porque é que se diz ser no seu superior
interesse que se impede a adopção por casais do mesmo sexo?
Como é que se poderá viver com uma
realidade familiar que parece não ensinar a distinguir, com as suas
próprias referências, o lugar dos homens e das mulheres na sociedade e na família?
E quando é que o “problema” das famílias homoparentais passa a ser o “problema”
da família? Acima de tudo, o que a homoparentalidade evidencia é a possibilidade
de se formar e viver a família de um modo não alicerçado nas categorias de
género que na sociedade Ocidental estiveram sempre na base da sua
formação, justificando (e justificadas por) o seu carácter natural. Para
melhor se perceber a homoparentalidade é pois fundamental desmontar este
conceito de família assente numa forte distinção de género e a partir daí
perceber se ainda sobram motivos para que se receie a sua proliferação.
M | Ribeiro Henriques
“Há ideias e factos, que são portadores de futuro”
|Coimbra, 21/04/2012|