Até há poucos anos
muitas portuguesas tinham de viajar ate Espanha para porem termo a uma gravidez
indesejada. Felizmente já o podem fazer em Portugal. Mas hoje, muitas – as que
para isso têm posses – têm de se deslocar a Espanha para conceberem uma criança
desejada.
Naquele país é
possível, desde 1988 (há mais de 20 anos, portanto), o acesso a procriação
medicamente assistida por parte de qualquer mulher, incluindo naturalmente as
lésbicas, e sem ser apenas por razões de infertilidade. Em Portugal, a lei da
Procriação Medicamente Assistida tem restrições que, no fundo, dizem que as
mulheres são seres inferiores e incapazes.
Para a nossa lei,
elas necessitam da tutela do homem com quem vivam ou com quem estejam casadas
para acederem a PMA. E precisam de ter problemas de infertilidade. Ficam de
fora as mulheres que queiram prosseguir projetos de maternidade sem relação com
um homem – e sem relações com um homem, o que abrange tanto heterossexuais como
lésbicas.
Ficam também de
fora os casais de lésbicas, em união de facto ou casadas. Não cessa de me
espantar como é que esta situação não foi ainda considerada inconstitucional,
no que tem de menorização das mulheres enquanto pessoas autónomas e cidadãs.
Mas não deveria
espantar-me. O sexismo perdura na nossa sociedade apesar de importantes
transformações legislativas. E se o conjunto das mulheres continua a ser alvo
de toda a espécie de discriminações, a situação agrava-se no caso das lésbicas:
ao sexismo acresce a homofobia, a qual também perdura apesar dos avanços
legislativas.
Quando olhamos
para as propostas de alteração da lei da PMA que tem vindo a lume – do BE ou do
PS – e para o incipiente debate público em torno da matéria, vemos que falham
sempre nalgum ponto. Ora restringem o acesso a PMA à ideia de tratamento da
infertilidade, ora excluem as lésbicas, ora não consideram a possibilidade da
presunção da maternidade ou da perfilhação pela mulher unida de facto ou casada
com a que recorre A PMA.
Em suma, a figura
da lésbica é o elefante na loja de porcelana. Uma loja com donos
preconceituosos – em relação às mulheres, e mais ainda em relação às lésbicas.
Que o enquadramento familiar das crianças seja usado como o “argumento” para as
restrições é apenas mais um caso da perversidade do pensamento conservador,
face a toda a prova científica sobre o predomínio da qualidade das relações de
parentalidade sobre a estrutura dos agregados familiares.
É o argumento
simétrico – e como é patético que ele seja usado por tanta gente de esquerda… –
do que era usado pelo opositores da despenalização do aborto.
Uma alteração
coerente da lei da PMA deverá garantir o acesso a todas as mulheres adultas e
em bom estado de saúde física e mental. A infertilidade não pode ser a única
justificação, pois isso implica quer a imposição moral da superioridade da
procriação conjugal, quer da heterossexualidade.
Posso ser
“radical”? É como se o Estado estivesse a violar simbolicamente as mulheres
heterossexuais sem companheiro, e as lésbicas, dizendo-lhes: “Querem filhos?
Arranjem um homem, mesmo que não queiram ter sexo com ele, mesmo que ter sexo
com homens seja uma violação da vossa identidade mais profunda como pessoas”.
Uma alteração da
lei da PMA deverá também levar a sério (mas como pode alguém imaginar – e
propor – algo de diferente?!) o reconhecimento das uniões de facto e casamentos
entre mulheres, garantindo a presunção da maternidade à segunda mãe, como já o
faz para os pais sem qualquer lago biológico.
Note-se (como é
referido num comunicado
da ILGA, cujo conteúdo subscrevo inteiramente) que, depois
da aprovação da lei que definiu as regras para a alteração do registo de nome e
sexo pelas pessoas transgénero, Portugal até já admite o reconhecimento de duas
mães ou dois pais legais.
Não há nenhuma
razão que impeça uma lei da PMA que garanta tudo isto. Porque a exclusão de
qualquer um destes pontos não é explicável a não ser, em última instância, pelo
preconceito – pelo sexismo e pela homofobia. No nosso país vivemos corn leis
esfrangalhadas, pontuais, parcelares, porque não somos capazes de assumir o
princípio da igualdade como base a partir da qual decidir.
Resultado? Casais
de gays e de lésbicas que não podem adotar enquanto casal; segundos pais e
segundas mães que não podem co-adotar ou perfilhar, ao contrário dos
heterossexuais, nem verem a sua paternidade ou maternidade presumidas (de novo:
ao contrário dos heterossexuais) criando assim problemas para as suas crianças;
ou lésbicas que não podem aceder à PMA, ainda que tenham a sua união de facto
ou casamento reconhecidos como iguais aos dos heterossexuais.
Não se trata
“apenas” de lutar contra a discriminação, de garantir igualdade de
oportunidades, ou de defender os direitos humanos. Trata-se de cumprir a
democracia e o princípio constitucional e civilizacional da igualdade. Isto só
é difícil de perceber e levar a sério por cabeças, à direita e à esquerda, que
desprezam o bem-estar das crianças (no plural, as crianças concretas e
existentes) no exato momento em que falam do seu supremo interesse (no
singular, “criança” abstrata).
Por que o fazem?
Não consigo honestamente encontrar outra resposta que não seja o preconceito
sexista e homofóbico. E quando os dois se juntam, são as lésbicas as mais
excluidas da cidadania. É na exclusão das lésbicas que se situam todos os
esforços do malabarismo legislativo deste país em crise não só financeira e
económica mas tambem democrática. Pareço ouvir algumas das acima referidas
“cabeças” ao congeminarem os pormenores das alterações á lei: “Eh, pá, isso
não, que se abre a porta às lésbicas”. Pois…
M | Ribeiro Henriques
“Há ideias e factos, que são portadores de futuro”
|Coimbra, 25/12/2011|