domingo, 25 de dezembro de 2011

Procriação Machistamente Assistida

Até há poucos anos muitas portuguesas tinham de viajar ate Espanha para porem termo a uma gravidez indesejada. Felizmente já o podem fazer em Portugal. Mas hoje, muitas – as que para isso têm posses – têm de se deslocar a Espanha para conceberem uma criança desejada.

Naquele país é possível, desde 1988 (há mais de 20 anos, portanto), o acesso a procriação medicamente assistida por parte de qualquer mulher, incluindo naturalmente as lésbicas, e sem ser apenas por razões de infertilidade. Em Portugal, a lei da Procriação Medicamente Assistida tem restrições que, no fundo, dizem que as mulheres são seres inferiores e incapazes.

Para a nossa lei, elas necessitam da tutela do homem com quem vivam ou com quem estejam casadas para acederem a PMA. E precisam de ter problemas de infertilidade. Ficam de fora as mulheres que queiram prosseguir projetos de maternidade sem relação com um homem – e sem relações com um homem, o que abrange tanto heterossexuais como lésbicas.

Ficam também de fora os casais de lésbicas, em união de facto ou casadas. Não cessa de me espantar como é que esta situação não foi ainda considerada inconstitucional, no que tem de menorização das mulheres enquanto pessoas autónomas e cidadãs.

Mas não deveria espantar-me. O sexismo perdura na nossa sociedade apesar de importantes transformações legislativas. E se o conjunto das mulheres continua a ser alvo de toda a espécie de discriminações, a situação agrava-se no caso das lésbicas: ao sexismo acresce a homofobia, a qual também perdura apesar dos avanços legislativas.

Quando olhamos para as propostas de alteração da lei da PMA que tem vindo a lume – do BE ou do PS – e para o incipiente debate público em torno da matéria, vemos que falham sempre nalgum ponto. Ora restringem o acesso a PMA à ideia de tratamento da infertilidade, ora excluem as lésbicas, ora não consideram a possibilidade da presunção da maternidade ou da perfilhação pela mulher unida de facto ou casada com a que recorre A PMA.

Em suma, a figura da lésbica é o elefante na loja de porcelana. Uma loja com donos preconceituosos – em relação às mulheres, e mais ainda em relação às lésbicas. Que o enquadramento familiar das crianças seja usado como o “argumento” para as restrições é apenas mais um caso da perversidade do pensamento conservador, face a toda a prova científica sobre o predomínio da qualidade das relações de parentalidade sobre a estrutura dos agregados familiares.

É o argumento simétrico – e como é patético que ele seja usado por tanta gente de esquerda… – do que era usado pelo opositores da despenalização do aborto.



Uma alteração coerente da lei da PMA deverá garantir o acesso a todas as mulheres adultas e em bom estado de saúde física e mental. A infertilidade não pode ser a única justificação, pois isso implica quer a imposição moral da superioridade da procriação conjugal, quer da heterossexualidade.

Posso ser “radical”? É como se o Estado estivesse a violar simbolicamente as mulheres heterossexuais sem companheiro, e as lésbicas, dizendo-lhes: “Querem filhos? Arranjem um homem, mesmo que não queiram ter sexo com ele, mesmo que ter sexo com homens seja uma violação da vossa identidade mais profunda como pessoas”.

Uma alteração da lei da PMA deverá também levar a sério (mas como pode alguém imaginar – e propor – algo de diferente?!) o reconhecimento das uniões de facto e casamentos entre mulheres, garantindo a presunção da maternidade à segunda mãe, como já o faz para os pais sem qualquer lago biológico.

Note-se (como é referido num comunicado da ILGA, cujo conteúdo subscrevo inteiramente) que, depois da aprovação da lei que definiu as regras para a alteração do registo de nome e sexo pelas pessoas transgénero, Portugal até já admite o reconhecimento de duas mães ou dois pais legais.

Não há nenhuma razão que impeça uma lei da PMA que garanta tudo isto. Porque a exclusão de qualquer um destes pontos não é explicável a não ser, em última instância, pelo preconceito – pelo sexismo e pela homofobia. No nosso país vivemos corn leis esfrangalhadas, pontuais, parcelares, porque não somos capazes de assumir o princípio da igualdade como base a partir da qual decidir.

Resultado? Casais de gays e de lésbicas que não podem adotar enquanto casal; segundos pais e segundas mães que não podem co-adotar ou perfilhar, ao contrário dos heterossexuais, nem verem a sua paternidade ou maternidade presumidas (de novo: ao contrário dos heterossexuais) criando assim problemas para as suas crianças; ou lésbicas que não podem aceder à PMA, ainda que tenham a sua união de facto ou casamento reconhecidos como iguais aos dos heterossexuais.

Não se trata “apenas” de lutar contra a discriminação, de garantir igualdade de oportunidades, ou de defender os direitos humanos. Trata-se de cumprir a democracia e o princípio constitucional e civilizacional da igualdade. Isto só é difícil de perceber e levar a sério por cabeças, à direita e à esquerda, que desprezam o bem-estar das crianças (no plural, as crianças concretas e existentes) no exato momento em que falam do seu supremo interesse (no singular, “criança” abstrata).

Por que o fazem? Não consigo honestamente encontrar outra resposta que não seja o preconceito sexista e homofóbico. E quando os dois se juntam, são as lésbicas as mais excluidas da cidadania. É na exclusão das lésbicas que se situam todos os esforços do malabarismo legislativo deste país em crise não só financeira e económica mas tambem democrática. Pareço ouvir algumas das acima referidas “cabeças” ao congeminarem os pormenores das alterações á lei: “Eh, pá, isso não, que se abre a porta às lésbicas”. Pois…

M | Ribeiro Henriques

“Há ideias e factos, que são portadores de futuro”

|Coimbra, 25/12/2011|